Venerável Mestre, Luzes, Autoridades com assento no Oriente, meus Irmãos.
Parodiando o grande escritor carioca Joaquim Maria Machado de Assis, em sua obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, posso dizer que “morri no dia 24 de março de 2013”. E, assim como o escritor, tenho que explicar minha morte.

Dos 13 aos 17 anos de idade, fui interno de um seminário católico, onde me preparava para a vida sacerdotal. Lá, diuturnamente, praticávamos a “ascese” – uma espécie de jogo psicológico em que as necessidades do corpo eram suplantadas pelas vontades do espírito. Mesmo após minha saída do seminário, incorporei a prática da ascese em minha rotina diária. Talvez por isso mesmo, poucas coisas na vida me surpreendem, causem sobressaltos, ou medo – nem mesmo a notícia de mortes de pessoas próximas, amigos ou parentes.

Há quase vinte anos convivo com inúmeros integrantes da Família Maçônica e tenho o imenso prazer de dizer que todos eles foram fiéis ao voto do silêncio, no que diz respeito a todo o processo de Iniciação, necessário para adentrar nesta Família. Por isso, eu estava totalmente despreparado para o que me reservava o alvorecer do dia de minha morte.
Após ser abordado, em plena madrugada, por dois senhores de bigodes, estranhos e de poucas palavras, fui colocado em um carro e tive os dois olhos cobertos por tampões e uma venda, o que me fez afundar numa inesperada, desconfortável e completa escuridão.

Não era uma situação muito cômoda; mas, pela prática do exercício da ascese, eu sabia que conseguiria suportar bem …
Contudo, com as voltas e mais voltas que o carro realizou, senti-me desorientado e isto desestabilizou o meu autocontrole e senti que os exercícios da ascese não seriam suficientes para me devolverem a segurança nos passos que eu empreendia naquele negrume.
Como um cego, literalmente, mergulhei em minha própria consciência e busquei resgatar, da escuridão em que me encontrava, um pouco de autocontrole (a despeito da certeza absoluta de não ser uma pessoa tão íntegra, tão impoluta, como seria necessário para tornar-me um membro daquela que sempre foi uma das Sociedades Secretas que mais me fascinou em todos os meus anos de estudo como profano).
(…)
Se o silêncio em uma profunda escuridão vai, pouco a pouco, minando nossos nervos e nos impondo insegurança, prejuízo maior advém dos barulhos, ruídos e sons desconhecidos, porque eles tomam proporções gigantescas. Assim, uma fogueira que crepita ao vento, nada mais é do que um pedaço de papel sendo amassado; um arrastar de cadeira, soa como uma máquina prestes a nos dilacerar a mão; uma gaveta bruscamente fechada no ambiente ao lado, soa como um tiro que assombra nosso coração; a corrente de ar de uma janela próxima, ao balançar nossos cabelos, dá-nos a impressão de estarmos à beira de um precipício.
É …! A imaginação corre solta quando somos privados da visão (e, quase sempre, só imagens amedrontadoras nos vêm à mente).

(…)
Após horas na solidão daquela escuridão quando, finalmente, a venda e os tapa-olhos me foram tirados, vi que estava bem melhor na escuridão … porque o ambiente em que me encontrava naquele momento (a Câmara de Reflexão) não é o melhor lugar do mundo para se ver depois de um longo período privado da visão: a iluminação é fraca e tosca de uma vela; numa pequena mesa, um crânio e alguns outros ossos humanos; pedaços de pão endurecidos; alguns copos com líquidos dos quais a única certeza que eu tinha, era que não queria bebê-los. Numa parede irregular, à minha volta, frases que, ao invés de animar, mais pareciam “ler” o quanto inseguro e sem controle emocional eu me encontrava naquele momento e… ainda por cima, um ser tenebroso, com uma capa preta e longa, um capuz preto e assustador a lhe cobrir a cabeça, com uma voz que soava como vindo do além-túmulo, sem nenhum tom de amizade (ou mesmo de pena, que fosse), comunicou-me que eu tinha que preencher o meu TESTAMENTO.

A simples menção de que teria que fazer meu Testamento, me levava à conclusão de que eu estava prestes a preencher um formulário, que desde sua criação como documento oficial e regular, no mundo profano (ao qual eu ainda pertencia), está diretamente vinculado à ideia de morte. Meus poucos e precários conhecimentos jurídicos não me deixavam fugir desta conclusão, ao mesmo tempo tão absurda e tão assustadora: MORTE.

E foi exatamente neste momento que compreendi que eu estava morrendo…
Ali, sozinho, olhando aquela caveira que me devolvia um olhar vazio e um sorriso irônico, percebi que se eu não fosse puro e sincero o suficiente, eu estaria morrendo para a Maçonaria; estaria assassinando o sonho, por anos acalentado, de entrar naquela Fraternidade que eu estudava há tanto tempo e que aprendera a admirar.
Se havia alguma chance, mesmo que pequena, de ser-me concedido o ingresso naquele grupo de homens seletos e misteriosos, a fraca luz daquela vela me indicaria o caminho. Com tal pensamento, recobrei o ânimo e pus-me a analisar tudo o que se encontrava naquele claustrofóbico ambiente.

Algumas frases me chamaram a atenção: dentre elas “não esperes retirar nenhum proveito material da Maçonaria”. Esta frase me aliviou; porque eu realmente não pretendia os bens materiais que a Maçonaria poderia, por via transversa, me conceder. Meu objetivo era mais transcendental: eu pretendia entender a Maçonaria, conhecê-la por dentro em toda a sua plenitude, mas não com os olhos e o coração de um curioso, mas de um estudioso, de um apaixonado.
Ao ler a frase “se tens medo, não vás adiante” imediatamente pensei no sentido inverso; ou seja, se eu tivesse um pouquinho que fosse de coragem, deveria seguir adiante com aquela Iniciação, entregar-me de corpo e alma àquele processo, àquele necessário ‘rito de passagem’.

Como a reforçar aquela minha frágil e moribunda esperança, dois símbolos que encontrei naquela caverna escura e inóspita deram-me novo ânimo: uma ampulheta, que me lembrou que o tempo é curto e é a única grandeza humana que não retrocede (e eu deveria tomar decisões rápidas com o pouco tempo que tinha dentro daquela caverna) e um galo, que me avisava que a luz de um novo dia estava para chegar e vencer as trevas daquela escuridão onde me encontrava, naquele calabouço escuro, nas estranhas da Terra.

Ao ver a frase “se bens queres empregar a vida, pensa na morte”, respirei fundo e busquei retomar o autocontrole que havia perdido. Ascese! Era isso! Eu queria viver, eu queria a vida… uma nova vida. E, para isto, precisaria atravessar aquele momento escuro, naquela caverna que mais parecia o útero da terra.

Com as esperanças renovadas, preenchi meu testamento e o entreguei àquele estranho homem de preto, que voltou a me vendar os olhos, e me tornou a jogar na escuridão. Mas, a diferença era que eu havia encontrado paz naquela estranha caverna e estava pronto para seguir, confiante, outro desconhecido homem que segurou minha mão, com firmeza e me falou com voz tranquila: “confiai; eu serei o vosso guia”.

E durante todos os momentos seguintes, sempre tive alguém me levando pela mão, como se eu estivesse participando de estranhas e inesperadas viagens e meu companheiro de jornada me foi conduzindo: primeiro, como um pai conduz os passos de seu filho; depois, como um mestre, que dirige o ensino de seu aluno e, por fim, como um amigo, como um irmão.
Com esta nova sensação de felicidade e segurança, senti que, no momento em que me foram retiradas as vendas, e eu voltava a enxergar a luz, morria um profano para o nascimento de um novo homem, que nasceu com muitas espadas sendo-lhe apontadas ao coração, por homens com olhares firmes, mas bondosos, que as empunhavam com a mão esquerda como a me dizer que elas não eram armas para me atingir, mas instrumentos de transmissão de um conhecimento secular e de proteção.

Assim como a lagarta morre para dar vida à borboleta, eu fiz minha travessia pelas profundezas da Terra, e quando de lá submergi, um OLHO RADIANTE brilhava no Oriente e encheu todo o meu ser de luz e iluminou o caminho que eu tinha que seguir: o difícil caminho do autoconhecimento, o qual só é possível àquele que se apoiar no tripé da Ciência, da Consciência e da Sabedoria.

Este caminho exige boa vontade no convívio fraternal com todos aqueles que vêm, ainda, atrás de nós e seguem nossos passos; exige companheirismo, com aqueles que caminham ao nosso lado, para que nos ajudemos mutuamente na senda que temos a trilhar e exige, acima de tudo, humildade para aprender com aqueles que estão à nossa frente e que, no mais das vezes, removem pedras que poderiam retardar nossa caminhada ou, no mínimo, desbastam-lhes as arestas, para que tais pedras não firam os nossos pés.

Meus queridos IIrm∴, MM∴, CC∴ e Apr∴, sempre estarei em dívida com cada um de vocês, pelo simples fato de estarem presentes nesta caminhada que iniciei desde o dia do meu nascimento, nesta Loj∴ J∴ e P∴ onde eu despertei para a Luz.

Bibliografia

– Regimento Normativo. Grande Oriente Paulista. 1999.
– Ritual de Aprendiz Maçom. Rito Moderno. 
Grande Oriente Paulista. 2005.
– Manual Dinâmica Ritualística. Rito Moderno. Grande Or∴ Paulista. 2005.

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