Gosto de pensar na cultura representada como um rio.
Acho um símbolo apropriado dado a extensão do seu traje- to, o que guarda nas profun- dezas, na impermanência de suas águas e nas ocorrências imprevisíveis que sempre en- contraremos em nossas jor- nadas. Me agrada pensar nas pessoas como pequenas em- barcações navegando através deste manancial, a levarem como carga, tripulantes e passageiros suas formações, padrões de comportamento, sentimentos, legados fami- liares, aspirações, sede de viver mais e mais e cada um de seus sonhos. Li em algum lugar que os arcanos, lá no idioma dos armênios, quer dizer arca ou embarcação.

Quanto mais tempo navegamos, mais descobri- mos do rio e dos sinais que nos auxiliam a cum- prir nossos intentos, o que nos é claro e trans- parente, e discernir aquilo que são as nossas intenções, que podem comprometer este trajeto. Há uma sublime peculiaridade entre o intento e a intenção, sua má compreensão nos arremessa diretamente nas garras da tentação e da ilusão. Aqui jaz uma insuficiência (e falha comum) da espécie humana de todas as épocas e reinos que leva aos menos hábeis a presunção, a desmedida e outras lacunas ainda maiores. Uma insuficiên- cia apenas requer a própria vigilância, esmero pessoal e intransferível de um artesão desenvol- vendo seu trabalho a fim de prover e solucio- nar tais lacunas do caráter. Dispensa homílias, conceituação ou discursos autojustificativos e que no cerne apenas querem projetar máculas sobre terceiros ou ainda angariar atenção, afe- to ou ainda alguma punição. Tudo em nome de agradar ou concluir alguma intenção. Não admira que o inferno católico esteja repleto de bem intencionados.

Caros navegantes, cada pessoa vem a “intro- jetar” na vida interior, o que lhe é mais caro e afim. E vem a projetar e realizar seu imaginário provando como realidade absoluta aquilo que mais lhe convir e prover o fatídico sentido e correspondência “pulsional” ou instintiva. No- vamente o elemento das águas, afetos, emocio- nal e alguma espiritualidade em desarranjo. Em outras palavras cada um bebe e nada nas águas que mais lhe convir.

Um rio de águas doces pode aplacar a sede. Seus peixes e outros animais podem alimentar. Suas águas fomentam o comércio. Só que um rio também mata em seus turbilhões, redemoinhos, bancos de areia e outros perigos aparentemente ocultos em sua vastidão. Temos aqui o inegociá- vel, a perda da ilusão de controle e o definhar da razão – o lado “daemônico” da natureza – para o qual todos nossos avanços, filosofias ou inten- ções nada são. Recordam cada um que perante a natureza nada somos e nossos feitos apenas im- portam em situações controláveis para cada um de nós – onde papéis sejam cumpridos, acordos estabelecidos e negociações sejam formaliza- das. Tais momentos não são para amadores, são para os bons (jamais para bonzinhos) pois es- cancaram que intenções apenas povoam o reino dos mortos – nada mais são do que abusivas notas de auto referenciais e de vistoso egoís- mo. Os perigos são reais e tem que ser bom para supera-los.

Ao mencionar tais símbolos verdadeiramente incômodos, lidamos com o inegociável, o incer- to, o escuro e o vazio – algo sideral e cósmico ao meu ver, pois é onde se desvela a luz, e a consci- ência dos mais hábeis fiéis aos seus intentos. É o que torna o olhar refulgente, iluminado como o de um feiticeiro além do caos do cotidiano, denotando quem é só barro e quem porta chamas e até mesmo a luz da consciência hábil – como uma lanterna – para navegar seu próprio arcano munido pelo intelecto acrescido de logos como navegador. E a habilidade na compreensão dos intentos como o leme para guiar a jornada.

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