1 – Os Ritos de Passagem na Literatura de Guimarães Rosa

O processo iniciático é, antes de tudo, um rito de passagem. Trata-se de um expediente utilizado por várias culturas em diversas partes da civilização humana. E sendo expressão cultural, não poderia deixar de ser analisado também sob o prisma da literatura.

Em diversas obras literárias, os ritos de passagem foram largamente utilizados de forma metafórica e alegórica para sinalizar as mudanças na vida dos personagens que por elas passam. Usaremos primeiramente a trama desenvolvida pelo célebre escritor brasileiro, João Guimarães Rosa, em sua obra-prima, Manuelzão e Miguilim.

Na trama por ele exposta, o personagem Dr. José Lourenço, médico, tem importância fundamental na vida do garoto protagonista Miguilim, pois é ele quem descobre sua miopia, ou seja, o mal que lhe acometia e lhe impedia de enxergar claramente o mundo que habitava. Miguilim é um garoto inteligente e observador que vivia na região do Mutum, lugar imaginário criado por Guimarães Rosa e que significa o sertão de Minas Gerais. Ao observar a dificuldade de Miguilim para enxergar, o médico lhe empresta seus óculos e permite, assim, ao jovem observar a vida através de uma nova ótica, causando ao agora adulto Miguilim uma profunda transformação em sua vida, um verdadeiro cisma irrevogável entre seu passado e a vida que teima em caminhar para a frente.

É, para o garoto, a passagem da infância para a vida adulta, momento este marcado pela pujante necessidade da descoberta daquilo que é novo e o deslumbre do personagem diante do mundo captado agora por sua visão amadurecida.

Os óculos, assim, simbolizam o rito de passagem deste personagem e o lançam rumo a um novo momento de sua vida, irreconciliável com as antigas e agora pueris necessidades de outrora.

Mas tal relevante transformação não carrega em si mesma toda a responsabilidade da mudança operada na vida de quem a sofre. Pode-se perceber pela leitura da referida obra que o seu final é aberto. Ao enxergar o novo mundo, ou seja, ao entrar na vida adulta, Miguilim parte para a cidade, deixando o campo e com ele suas antigas lembranças. Contudo, cabe tão somente ao protagonista a iniciativa de sacralizar dentro de si essas tais mudanças ou manter-se estanque ante a solidificação das antigas estruturas infantis que sempre o rodearam.

Da mesma forma, no livro Primeiras Estórias, do mesmo autor, o conto “A Terceira Margem do Rio”, trata do mesmo tema de forma até mesmo mística. O personagem Pai, que não tem nome, constrói uma canoa de pau de vinhático e, deixando para trás toda a família e qualquer outro interesse seu, parte solitário para morar dentro do rio, numa viagem rumo à sua terceira margem, um lugar onde apenas ele poderia ir.

Ele parte para sua viagem ao desconhecido não sem antes causar em toda a sua família um estranhamento geral, receios aberrantes diante da ousadia do Pai que foi recebida pelos filhos e sua esposa com profundo pesar e incompreensão.

Mas apenas ele poderia realizar aquela viagem. A terceira margem do rio não é senão o encontro consigo mesmo. E o Pai sabia que para concretizar aquele encontro era preciso deixar tudo e todos, lançar-se em suas próprias obscuridades e procurar no seio delas o deleite do autoconhecimento. Assim, a terceira margem é aquilo que não se vê, que não se toca e não se conhece, é, por si mesma, o fluxo da vida e a busca pela consciência de nossa própria existência.

A canoa é, portanto, a metáfora para o rito de passagem entre a inconsciência e a consciência, o não existir e o existir filosófico. É a dura, porém, honesta realidade do corajoso que se lança à própria sorte e a sua tentativa homérica de descobrir o mais profundo de sua alma.

2 – O Ritual de Iniciação Maçônica

Na Iniciação maçônica, da mesma forma, há também, na vida do neófito, um cisma irreparável entre o antes e o depois, entre a sua antiga condição de profano e agora o deslumbre diante da luz e do novo mundo que se lhe abre.

E como qualquer jovem criança, o agora neófito precisa se por a caminho de sua nova vida e enfrentar seus novos dilemas.

Tal como na vida física, em que caminhamos da infância para a vida adulta e por fim à velhice, também assim o neófito precisa incrementar sua consciência que deve passar, necessariamente, pelos estágios do homem exterior, o homem entrando e o homem já dentro, praticando assim seu caminho místico até a Grande Loja do Universo.

Mas a iniciação física, o ritual por si mesmo, não necessariamente implica na iniciação espiritual do verdadeiro maçom. Nas lições de Manly Palmer Hall, em seu clássico livro “As chaves Perdidas da Maçonaria”: “O homem precisa perceber que sua verdadeira iniciação é espiritual, e não um ritual físico, e que sua iniciação no Templo vivo da hierarquia espiritual que regula a maçonaria pode ocorrer anos após receber o grau físico, ou espiritualmente, pode ser um grande mestre antes que venha a este mundo. Provavelmente, há poucas oportunidades na história da maçonaria em que a ordenação espiritual do aspirante acontece ao mesmo tempo que a iniciação física, pois a verdadeira iniciação depende do cultivo de certas qualidades da alma – a matéria pessoal e individual, que é deixada inteiramente à vontade do maçom místico e que ele precisa desempenhar sozinho
e em silêncio.”

Assim, quando o neófito morre simbolicamente dentro da Câmara das Reflexões, o faz para deixar o mundo profano e nascer novamente pela iniciação, saindo do ventre materno já caminhando rumo à consciência espiritual de sua nova vida como maçom e de suas novas obrigações.

3 – Conclusão

Feitas tais considerações, resta apenas concluir que os ritos de passagem usados na literatura, verdadeiramente refletem e imitam aquilo que sempre fez parte do ideário humano e sua relação com o místico.

Há, por conseguinte, um fluxo inexorável trespassando cada momento de nossas vidas. E os ritos que nos esperam a cada etapa, desejam de nós coragem e honestidade com as quais devemos nos municiar para seguir em frente na certeza de que mais uma etapa foi cumprida e uma nova se avizinha.

Para seguir em frente, o Homem precisa avançar e sobrepor barreiras, sejam elas físicas, morais ou espirituais. E somente com coragem e determinação, o Homem é capaz de tais avanços e como corolário, expande sua consciência e avança na Grande Obra de lapidar sua pedra bruta.

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