Da teoria à prática

A América não desiste do sonho americano e muito menos da sua visão hegeliana de Estado, de povo escolhido por Deus para regenerar e redimir o mundo. Esse é o foco, o ponto de concordância, que a cada embate na sucessão política dos EUA aflora o sentimento messiânico.

Dos atentados em 2001, traumáticos não só para os EUA, mas para todo o mundo, passando pelas crises financeiras internas e externas, crise até de identidade, sim, a América necessitava de um novo unificador. Esse é o contexto histórico que levou à vitória Barack
Obama em 2008, 44º. presidente americano e o mais votado da história dos Estados Unidos. Pai negro, mãe branca e padrasto asiático, Obama transpõe a barreira racial derrotando o senador pelo estado do Arizona, John McCain, e desenhando em seu discurso de posse uma frase histórica: “Se existe alguém que ainda duvide que os Estados Unidos sejam o lugar onde todas as coisas são possíveis, que ainda questione a força de nossa democracia, a resposta está aqui esta noite”.

Reino de todas as possibilidades, essa é a visão da democracia americana, vista de dentro ou de fora dos EUA, onde a igualdade consolida os ideais para a construção de um mundo melhor. “Apesar dos objetos novos em que centrei minha atenção, durante minha estada aos Estados Unidos, nenhum se destacou mais que a igualdade de condições” (TOCQUEVILLE, apud BASTOS; ARRIADA, 2007, p. 9). Definições da democracia à parte, cumpre analisar os reflexos dessa visão transcendental. Chaui (1996) nos alerta que essa imagem populista e messiânica indica a permanência da concepção teocrática do poder. Assim, se os governantes e as leis são de certa forma entendidos como expressões da manifestação mística, em que proporção isso poderá contribuir ou, por outro lado, comprometer a eficácia de um sistema que se propõe a ser um caminho para a justiça social? Obama reconheceu o mito e fez dele a base de sustentação de sua vitória. A imprensa surfou na tese de reconstrução do espírito e da esperança americana; fez disso uma bandeira nem tanto pelo seu ideal, mas mais por ser ela o mote, a matéria-prima de sua ação mercantilista conectando a ideia, agora transformada em produto de venda, a um público esperançoso, disposto a pagar pelo novo mundo. Este, inclusive, é um aspecto alarmante de um liberalismo que constrói arquétipos de esperança sem o compromisso com a crítica de
suas certezas.

Não importa o resultado, o que importa é acreditar, desde que isso movimente a economia e crie um sentimento de felicidade.

Vitória alcançada, as luzes do espetáculo se apagam e a partir desse ponto é que a tese do superlativo começa a ser submetida. De que forma aqueles ideais serão implementados para que produzam o efeito esperado? Há consenso? A pergunta nem seria essa. Melhor seria, há possibilidades de consenso?

Resolver, por exemplo, a questão do aborto. Como fazê-lo desconsiderando a malha de poderes que transitam naqueles saberes históricos sepultados e naqueles desqualificados dos quais nos fala Foucault? Estão esses saberes sujeitados até que ponto? Agregue-se a isso o individualismo, manifesto da opinião própria, do saber comum e da verdade relativa a cada pessoa, grupo, instituição ou associação. Em texto mais simples, como conciliar a conduta ética individual dentro de um tema polêmico de fundo moral? Na questão do Sistema Público de Saúde, a prática se apresenta de forma diferente do espetáculo do palco das discussões onde há uma opinião pública coerente com o desejo de melhorias; no entanto, melhorias são subjetivas e requerem ações individuais, aprofundamento de temas não debatidos na esfera do macrodiscurso. Esse aprofundamento, essa capilarização, encontrará enfrentamentos de interesses políticos, econômicos, funcionais e até morais distintos, afinal essa democracia de igualdade e liberdade de expressão garante a manifestação dialética das opiniões e anseios.

Esse, portanto, é o desafio político de Obama. Transformar o discurso em realidade, em fato. Não cumpre aqui elencar suas conquistas e as já reconhecidas decepções, o que nos interessa é avaliar ou construir uma crítica dessa base conceitualista de democracia.

Esse, portanto é o desafio político de Obama. Transformar o discurso em realidade, em fato

E por conta dessa relação conflituosa estaria então Focault certo ao afirmar que a política é outra forma de fazer guerra? Mas, que guerra é essa? Por política, do grego antigo πολιτεία (politeía) e tomando por base uma de suas definições, entendemos como sendo as relações que garantem a existência do Estado enquanto sociedade, coletividade. Assim, fazer política é gerir as relações que propiciem, em tese, o bem comum, contratualista, para citar Hegel. E mais ainda, o bem fazer. Essa relação de poder na sociedade, da luta por interesses individuais, mesmo reconhecendo o desejo coletivo do bem viver expressa, como diz Focault, uma “guerra silenciosa” (FOUCAULT, 1999 apud MARQUES, 2010, p. 170).

A conexão das hipóteses de Reich e Nietzsche, ainda que contextualizadas por Focault em sua tese, transcende a visão da política como método de pacificação. Isso se torna mais perceptível quando avaliamos casos concretos, como o exemplo dado pela realidade americana. A política é consenso apenas às margens das vias de fato, utilizando um termo conhecido em Direito Penal. Quando ela passa a ser exercida no âmbito das mudanças, colocada em prática, deixa clara sua natureza de campo de batalha. Obama sabe disso e fará uso de todo seu conhecimento em estratégia política para fazer valer seu conjunto de verdades relativas.

A despeito das relações conflituosas, a democracia americana dá ao mundo uma percepção de que sim, nós podemos, mesmo que para isso tenhamos que perder algumas batalhas, sendo a política esse método eficaz de contenda que atua no palco da grande guerra humana pela construção de um mundo melhor.

Referências:

– CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2009.
– MAGEE, Bryan. História da Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
– BASTOS, Maria Helena Camara e ARRIADA, Eduardo.
A democracia na América, de Alexis de Tocqueville: Uma leitura para a história da educação. Unisinos, 2007. Disponível em
www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/pdfs_educacao/vol11n1/art01_bastos.pdf. Acessado em: 19 set. 2011.
– WIKIPEDIA. Michel Foucault. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Michel_Foucault. Acessado em: 19 set. 2011.
– WIKIPEDIA. Teocracia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Teocracia. Acessado em: 20 set. 2011.
– WIKIPEDIA. Liberalismo. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Liberalismo. Acessado em: 21 set. 2011.

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